Suavia

Já de há muito tempo que a maneira come ela me olhava me perturbava profundamente. Tanto que eu não conseguia fixar os olhos nela por muito tempo.
O olhar dela parecia que me atravessava de um lado ao outro, que me tornava transparente…
Normalmente seria algo de que eu gostaria, mas neste caso, era complicado.
Ela, embora minha colega, era uma “tia” de Cascais, conhecia meio mundo, andava por festas, vestia roupas de marca, vivia numa vivenda, estava junta com um tipo bastante mais velho mas carregado de Papel, e que embora não fosse construtor civil, tinha o mesmo tipo de mentalidade, Mercedes enorme, ultimo modelo, topo de gama…
Já eu, um desgraçado, pé rapado, “metaleiro” com mau aspecto, numa relação que durava já há uns anos, e que tinha já terminado há bastante tempo embora nenhum dos dois se desse ao trabalho de o admitir. O que me mantinha na relação era o medo do que ela poderia fazer a ela própria, e ela usava esse medo para me manter por perto.
Tinha (e ainda tenho) um carinho enorme por ela, mas já seria impossível nós funcionarmos. Ela tinha uma depressão grave e recusava-se a procurar tratamento e eu, por causa da depressão dela, começava a cair numa.
No meio de todas as minhas dúvidas existenciais à altura, aparece esta criatura que, sem eu conseguir perceber o porquê, se dava ao trabalho de olhar para mim com esta intensidade absurda, como se eu valesse, de facto, alguma coisa. E eu tinha tanto a noção de que não valia que fugia ao seu olhar, não o enfrentava, tentava não lhe responder…
…mas incomodava-me.
Pensava eu, de mim para mim, que raio teria eu para oferecer a uma mulher que tinha, aparentemente, tudo?
Ouvia-a a falar dos sítios para onde ia de férias, da casa de fim-de-semana, da festa da “não-sei-quantas” que tinha sido um arraso…
…do X, do Y, do Z que tinham feito isto e aquilo…
A verdade é que estávamos situados em mundos completamente à parte, tão distantes quanto a distância que vai de um lado ao outro da via láctea. Aparentemente não havia qualquer ponto de contacto…
…a não ser o trabalho.
As conversas entre nós foram fluindo. Encontrávamo-nos no café, de manhã, antes de entrar ao serviço, ou à hora do almoço. Falávamos disto e daquilo…
…e quando eu comecei a reparar no olhar dela, comecei a ficar bastante desconfortável.
No entanto, da primeira vez que nos tínhamos cruzado, houve um momento. Uma pausa. Algo que não consigo definir com estas palavras escritas que são demasiado imperfeitas.
Quando entrei para aquele trabalho ela estava de férias. No dia em que voltou, entrou na sala onde costumava trabalhar e onde eu estava a fazer um pequeno favor a uma colega de sala dela. Conforme entrou o nosso olhar cruzou-se e posso jurar que o meu coração falhou uma batida. Foi algo ínfimo, imperceptível, mas que me fez uma das sensações mais docemente estranhas que tinha vivido até então.
Ela era simplesmente linda. E como se isso já não bastasse tinha uma postura, uma maneira de falar que me agradavam imenso. E embora fosse bastante “tia” detestava que a identificassem como tal.
Fomos ganhando alguma confiança, através de amigos comuns. Sim porque depois desse primeiro dia ela nem se dignava a reconhecer a minha presença num lado qualquer. Um pedido de ajuda dela a um colega que me pediu ajuda a mim para resolver o problema dela foi o nosso ponto de contacto. Fomos falando, fomo-nos conhecendo, até eu começar a reparar naquele olhar insistente.
Como é obvio, tudo isto durou, como sempre dura, até um dia…
Era algures no principio da primavera. Era uma sexta-feira em que, por causa de um feriado no dia anterior, quase ninguém tinha vindo trabalhar. O edifício estava praticamente deserto. Eu tinha vindo. Ela também.
Por volta do meio-dia ligou-me a perguntar se íamos almoçar juntos à cantina, no ultimo andar do edifício. Respondi-lhe que sim e combinamos a hora.
À hora indicada lá estava eu. Ela chegou logo em seguida. Fomos falando, comendo, descontraidamente, sem pressas…
…afinal, nem chefias tínhamos no edifício…
…mas não quisemos abusar. A seguir ao café decidimos ir até à minha sala fumar um cigarro à janela.
Estivemos, fumamos e a conversa continuava a fluir acerca de tudo, mas sobretudo de visões pessoais que tínhamos em relação ao mundo. E aquele olhar não se desviava de mim, e os seus  olhos sempre à procura dos meus e quando eu ganhava coragem para mergulhar nos olhos dela…
Acabei por me sentar na minha cadeira enquanto ela ficou à minha frente, encostada a uma outra secretária, hoje vazia, sempre a afirmar que tinha de ir mas a conversa a nunca acabar, e o olhar sempre presente.
A certa altura não me contive.
-Pá, tens que deixar de olhar assim para mim.
-Assim como? – Perguntou ela com um sorriso sacana, a fazer-se desentendida.
-Assim como olhas, com essa intensidade toda.
-Incomoda-te?
-Um bocadinho.
-Porquê?
Enfrentei o olhar dela, e respondi.
-Porque me fazes passar algumas coisas pela cabeça e não tarda nada tomo alguma atitude, e ainda faço alguma coisa…
-Como por exemplo?
Não respondi.
Levantei-me, com os meus olhos colados nos dela, contornei a minha secretária, fui direito a ela, agarrei-a pela cintura, colando o corpo dela ao meu, envolvi-a e respondi por fim – Isto! – enquanto mergulhava em direcção aos lábios dela tocando-a com suavidade, mas ao mesmo tempo como se aquele beijo sempre tivesse sido nosso, como se aquele momento fosse absolutamente inevitável na minha vida, e ela recebeu-me com doçura e sem receios, entregando-se a mim, fazendo a língua procurar a minha e ficámos ali, não sei quanto tempo, perdidos num abraço que parecia apenas pecar por tardio, urgente mas calmo, doce, uma doçura que eu intuía existir mas que até então me tinha escapado por completo.
Foi a primeira vez que me perdi por completo num simples beijo.
E quando o beijo acabou, separamo-nos, ela foi em direcção à porta, com um ar sereno, e saiu. Não dissemos uma palavra.
Senti-me absolutamente…
…sei lá…
…incrivelmente estúpido, talvez!
E agora?
Fiquei sem saber o que faria em relação a ela, nem em relação a mim. Sem saber o que fazer quando a visse outra vez. Mas foi ela que solucionou o problema. Umas duas horas depois, entrou-me pela sala, sem bater, veio direita a mim, beijou-me e saiu sorridente dizendo apenas “Até amanhã”…



9 comentários:

Tulipa Negra disse...

Ooooohhhhh!
O amor é tão lindo... :)
Beijinhos

Louise disse...

Por alguma razão acho (ou decidi achar) que isto possa ter mesmo acontecido.
Por essa razão, digo-te que admiro o facto de, mesmo perante o teu desconforto, teres decidido agir. Hoje em dia a maioria dos homens têm medo de agir, quase têm medo de ser homens... de dominar as situações. Hoje em dia usa-se demasiado a desculpa da igualdade entre sexos.
Ela deu-te o sinal... e tu respondeste. É uma pena que muitos optem por desviar indefinidamente o olhar.

Devo dizer ainda que este pequeno texto foi de uma sensualidade extrema, apesar de nada ter passado além de um beijo.

Anónimo disse...

Tulipa Negra,

É, não é?
Há altura era jovem e idealista...
(e creio que mais parvo um bocadinho do que sou agora)

:)

A Loira disse...

Estou completamente de acordo com a Louise.

Isto foi profundo, a intensidade de um beijo pode levar-nos à loucura.

Adorei.

Anónimo disse...

Louise,

Eu sei que a maior parte das pessoas que por aqui passa encara estes textos como contos. Alguns são, mas os que são estão claramente identificados como tal.
Os outros que não o estão são memórias minhas. Alguns pormenores são alterados, claro, para não revelar identidades. Prefiro referir-me às mulheres que por aqui vão sendo retratadas como "ela" precisamente por isso. E claro que não escrevo por uma ordem cronológica, vou escrevendo como me apetece e quando me apetece, portanto a "ela" que está aqui hoje pode não ser a mesma "ela" a que me referirei no futuro ou a que me referi ontem.
São flashes, momentos, pura e simplesmente.

Aparte isso, já fiz desta fase da minha vida uma história coerente. foi um tempo muito curto, mas importante para mim, mudou a minha visão do mundo e das pessoas. Mas esse longo texto não vai voltar a ver a luz do dia, por minha opção.

E sim, era desconfortável, não por ela ou por mim, mas pelas circunstâncias que nos rodeavam. Mas a verdade é que ela era irresistivelmente apelativa...
Além disso, posso garantir-te de que esta mulher caiu na minha vida como um anjo numa altura em que eu próprio me desvanecia, me anulava, e caia mesmo numa profunda depressão. foram anos a mais a anular-me para conseguir lidar com problemas que não eram meus e cuja dona não tinha a mínima tensão de resolver. Ela precipitou a solução, quer para mim, quer para a dona dos problemas, e independentemente de tudo o que se veio a passar, isso será algo por que lhe estarei para sempre grato.

Creio que já leste mais coisas que se passaram com esta "ela" por aqui, muitas delas curiosas e bastante loucas até...

Quanto à sensualidade extrema, acredita, estas palavras ficam bem aquém daquele momento...

:)

Anónimo disse...

Vera,

Pode! Assim como pode fazer desvanecer tudo num ápice...

:)

Vontade de disse...

Oh momento bonito esse... gosto tanto dessa intensidade, adorei.

Anónimo disse...

Simplesmente lindo =)

Anónimo disse...

Vontade de & Waldorfa,

:)