Opera

Saí do trabalho. Os dias já estão mais compridos, por isso saio ainda com a luz do Sol a dourar o topo dos edifícios.
Subi a rua a pé e dei com uma rotunda, ornamentada com uma fonte, no centro de um cruzamento mais que movimentado. Olhei para a estátua de onde jorrava a agua e pensei para comigo a quantas coisa teria ela assistido ao longo do tempo em que tem estado ali.
Atravessei a estrada, até a rotunda, e sentei-me na fonte. Fiquei imóvel, fechei os olhos, respirei fundo, enchendo os pulmões e prendi a respiração para que nem o som da respiração me distraísse. Depois, dediquei-me a ouvir.
Chegaram até mim os sons da cidade, entraram em mim, aparentemente caóticos e descoordenados, mas ao mesmo tempo parecendo uma sinfonia, dirigida por um qualquer maestro oculto. Depois, à medida que os meus pulmões reclamavam ar, a batida do meu coração começou a fazer-se sentir nos meus tímpanos.
Expirei por fim, abri os olhos, mas deixei-me ficar ali, imóvel, como se fosse parte integrante da fonte à beira da qual estava sentado.
É estranha mas deliciosa esta sensação de que tudo à nossa volta se move.
As ruas estavam constantemente pejadas de homens e mulheres, todos eles com as suas mascaras padronizadas.
Os homens com fatos azul-escuro, cinza ou preto, camisas brancas, azul claro ou cor-de-rosa esbatido, variando apenas nas gravatas usadas. Todos iguais, como parte de um exercito estranho que vai para o campo de batalha armado com canetas, calculadoras e argumentos legais.
Elas, todas completamente diferentes umas das outras, mas todas com a mesma saia quatro dedos acima do joelho, todas com o cabelo pintado, para não se verem os brancos da idade, todas maquilhadas, umas mais, outras menos, conforme as marcas da idade, e com as distinções sociais a serem feitas pelo estatuto das marcas que cada uma usava, mas todas elas a quererem parecer competentes, sensuais e fortes.
Via-os e perguntava-me, quantos deles se empenharão tanto na sua vida pessoal como se empenham na sua vida profissional?
Quanta desta gente que anda apressada de forma tão sensual, e por vezes mesmo ousada, pelas ruas desta zona “in” da cidade, na esperança de cativarem os clientes os chefes, os desconhecidos que se cruzam, chegam a casa e tentam cativar os companheiros?
Quanta desta gente chega a casa desgastada pelo esforço que faz para ser outra pessoa durante um dia inteiro e não tem paciência para investir na relação com o companheiro ou companheira, e na relação com os filhos?
Quantas separações há, entre cônjuges, entre companheiros, entre pais e filho, por causa destas mascaras?
Quantos homens e mulheres não se queixam de que os respectivos companheiros não lhes ligam e caiem na tentação da traição com colegas de trabalho, porque estes elogiam e enchem o ego?
E porque é que os companheiros não ligam? Será tão fácil e normal seduzir alguém que está vestido para seduzir, como alguém que está com um pijama largo e desbotado e a cara cheia de creme para as rugas e onde nem se vê um centímetro de pele.
Estranha sociedade esta onde o sucesso se mede, muitas vezes, mais pela capacidade de sedução e afirmação do que pela competência e capacidade de realização. Onde se dá mais valor às relações institucionais do que pessoais. Onde se passa mais tempo a investir no projecto da empresa em que se trabalha do que no projecto de vida e no legado que se deixa aos descendentes.
A humanidade não é uma sociedade, é uma aglutinação de egos que não conseguem ver além de si próprios.
Estava perdido nestes pensamentos quando, na rotunda, dois carros colidiram gerando o caos no caos que já havia anteriormente. A orquestra de buzinas subiu num crescendo ensurdecedor, acompanhada pelo coro de gritos e insultos…

Segui o meu caminho, reconfortado por esta opera de compositor desconhecido

10 comentários:

Vício de Ti disse...

As pessoas preocupam-se um pouco demais com os outros e em construir a opinião que os outros devem ter delas próprias. Este post completa um pouco o teu post anterior :)

Anónimo disse...

Vicio de ti,

Cada vez mais vejo à minha volta uma falência de valores...
...pura e simplesmente porque na correria do dia a dia eles não são passados à geração seguinte.
Demitimo-nos do que é importante em nome de um estatuto financeiro ou social que não é nada mais que um saco de ar quente...
...muito cheio de nada!

:)

pecado original disse...

'É estranha mas deliciosa esta sensação de que tudo à nossa volta se move.'

Para o bem e para o mal!

Vício de Ti disse...

O passar valores à geração seguinte é que nos dá algum sentido :) isto na minha opinião.

Anónimo disse...

Vicio de ti,

Pois é...
...mas olhando à tua volta, para as gerações mais novas, achas que é isso que está a acontecer?

:)

Vício de Ti disse...

Gosto de acreditar que sim, gosto de acreditar que um filho ainda é um projeto de vida, mas percebo em absoluto o que queres dizer. Acho que há de tudo mas também acho que cada vez mais tende a prevalecer alguma ausência valores e de respeito pelos outros. Tenho constatado que muita gente não enfrenta os problemas que tem, apenas os contorna escolhendo caminhos mais fáceis.

Anónimo disse...

Tinha saudades de passar aqui e de te ler! Agora vou ali em baixo num instante ler um pedacinho do Chuva :)

Anónimo disse...

Pecado original,

...é quando temos a sensação de que somos apenas mais uma parte móvel...

...quando pensamos que somos o centro do universo, pode ser estranha e deliciosa para nós, mas para os outros, muitas vezes, é um inferno...

:)

Anónimo disse...

Ana B.,

...e já leste...?

:)

Anónimo disse...

Vicio de Ti,

Não me refiro apenas a isso...
...se quiseres, esse "apanhar atalhos" faz parte da nossa cultura.
A questão está em transmitir mesmo quem somos, o orgulho na nossa bandeira para além dos jogos da selecção (acho que se não fosse pela selecção já ninguém se lembrava nem do hino nem da bandeira), a nossa história, onde chegamos e como...

Talvez se tivessemos um pouco mais de orgulho em tudo o que já fomos e conseguimos, conseguissemos encarar o futuro com mais esperança...
...e mais brio!

:)