Tinha acabado de chegar à paragem de autocarro, com o cérebro ainda meio dormente dos semi-sonhos tidos na pacatez da viagem de barco.
Eram sete e vinte da manhã. Sentei-me. Fechei os olhos, no meio desta rua deserta. Sabia que o “60”, que me levaria ao alto da Ajuda ainda demoraria um pouco a chegar, como demorava sempre a esta hora da manhã. Comigo, na paragem, apenas um tipo, talvez com os seus cinquenta, todo grisalho a fumar um cigarro.
De olhos fechados, nesta pequena rua paralela à avenida principal, os sons da cidade eram baixos, não incomodavam. A cidade parecia que tinha ficado inteira depois destas duas ou três filas de prédios.
Mas eis que o silêncio é entre-cortado por vozes altas, propositadamente masculinas, quatro ou cinco a uns cinquenta metros à minha esquerda.
Chatos. Não se pode estar em paz.
Olhei e, lá estavam eles, de volta de uma carrinha cinzenta que estava estacionada em cima do passeio com as portas de trás abertas. Mas a comoção não era acerca do trabalho. Não tinha mesmo nada a ver com o conteúdo da carrinha.
Ela acabara de passar por eles.
Como já estava de costas para eles, tinha um semi-sorriso sacana na cara. Caminhava calma em cima das suas botas de cabedal até ao joelho, com saltos agulha, bem altos. Acima estavam umas meias de mousse, pretas, mas finas. As botas faziam-lhe as pernas parecer ainda mais elegantes, e ela tinha algum porte no andar.
A saia, preta, de tecido, era realmente mini. Tão mini que mal lhe descia abaixo das nádegas, e enquanto ela andava, a saia revelava, alternadamente, um pedaço de cada uma delas.
Um blusão de cabedal, apertado, demonstrava o suficiente da sua silhueta para deixar adivinhar que para lá do blusão havia uma cintura fina e um peito equilibrado, nem grande nem pequeno.
No rosto alvo, mas mais alvo ainda pela maquilhagem, destacavam-se uns lábios desenhados num tom de cereja madura, mas não demasiado, aquele encarnado vivo e brilhante. Todo o rosto era enquadrado por um cabelo liso, escorrido, pelos ombros, pintado de preto.
Os homens lá atrás, primatas hominídeos, ganiam como babuínos no cio. Mandavam ao ar piropos com declarações de intenções despropositadas, até porque, se ela se virasse de repente e os enfrentasse, toda aquela masculinidade daria lugar à insegurança.
Eu olhei-a e vi claramente para lá das aparências. Via-a a vir do outro lado da rua, na minha direcção, e percebi que, para lá de toda aquela segurança aparente, no andar, na forma como se movia, na forma como aparentemente ignorava os comentários, na forma como estava acima dos olhares dos homens (e das mulheres, embora destas, uma pequena minoria pelos mesmos motivos dos homens e a larga maioria por pura inveja) estava o ego frágil que precisava deste tipo de afirmação para se sentir bem.
Ela seria uma mulher igualmente interessante, viesse vestida como viesse. Mas, obviamente, não seria tão notada, porque nesse caso seria preciso olhar para ela com olhos de ver.
Estava já quase à minha frente, quando olhou para mim, directamente, procurando em mim a mesma reacção que os outros lá atrás tinham tido. Acho que para sua surpresa encontrou os meus olhos directamente nos dela, e não nas pernas elegantes ou em qualquer outra parte da anatomia.
Levantei ligeiramente o sobrolho, e ela percebeu claramente que eu não olhava para a mesma pessoa que os tipos lá detrás ou que o meu companheiro temporário de paragem que por esta altura se tinha esquecido do cigarro que fumava e olhava para ela com os olhos cheios de…
…gula!
Eu olhava apenas para um ser pequeno e frágil com uma necessidade de auto-afirmação extrema.
Ela desprendeu-se do meu olhar, desceu da segurança que tinha anteriormente, o sorriso desapareceu-lhe da face, e cravou os olhos no chão, à sua frente.
Como que por magia, os comentários dos babuínos cessaram, o homem ao meu lado lembrou-se do cigarro, e ela seguiu o seu caminho.
Mas quando chegou a esquina a seguir, onde ia virar para o lado da avenida principal, e antes de desaparecer por entre os prédios, olhou ainda, inquiridora, na minha direcção…
6 comentários:
Por vezes, algumas, acreditam que seja a forma mais fácil de "chegar" ao que pretendem. É sempre agradável para uma mulher ser olhada e nem que seja instantemente desejada por um homem, mas acredito que não seja essa a melhor maneira pois a maior parte das reacções obtidas são essas :)
Vicio de ti,
Escrevi há algum tempo, num história, a seguinte frase: a diferença entre a elegância e a vulgaridade, na maior parte das vezes, não é mais que um mero detalhe
...e acredito mesmo nisto!
A menina parecia-me acabada de sair do trabalho para te ser franco e, apesar de ser BOA, mas mesmo BOA, era tão absolutamente vulgar...
:)
ainda bem que ainda há homens a pensar assim....esperemos que não sejas o único...
:)
Por vezes vejo ao que as mulheres se sujeitam para dar nas vistas...nunca entendi se gostam ou se é por necessidade de se afirmarem como referes ...
andar em saltos de agulha na calçada portuguesa é sinceramente um desafio...
Estrela,
A minha vasta (gaba-te cesto) experiência afirma-me que uma das coisas que a maior parte das mulheres mais gostam é de uma boa polidela ao ego...
...e não há maneira mais rápida de a obter...
(porque convenhamos, se mandarmos um piropo, por norma chamam-nos estupidos, mas, tal como esta menina, quando se viram e longe da vista fica lá aquele sorriso sacana...
Não sei se há mais a pensar como eu ou não...
...mas acredito não ser o unico...
:)
Essencialmente na minha óptica tudo tem que ser com conta, peso e medida. Tudo o que é em excesso, peca. Há que imperar o bom-senso e a astúcia que tão bem caracteriza as mulheres - modo geral, óbvio! -
:)
A minha essência,
Curiosamente vejo cada vez menos de ambas nas mulheres com quem me cruzo...
...sinal dos tempos? Ou estarei eu a ficar mais esperto?
:)
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