Reconstrução


Lembro-me perfeitamente de como a conheci, porque há coisas que são inesquecíveis…

O gajo entra-me pelo estúdio adentro, coisa que eu não estranhei, uma vez que estava à espera dele, com a saudação mais famosa dele, um “Atão, Zé Manel? Tá-se?” e apanha-me em plena sedução com a minha Epiphone Flying V, resquício dos meus tempos de metaleiro e que entretanto já seguiu para outras paragens, enquanto gravava músicas dos Teatrum, não com um objectivo concreto, mas apenas porque, depois de ter desistido delas queria ter uma espécie de arquivo do que tinha feito, levando com a resposta habitual, um “tá-se…” meio jogado fora e que demonstrava a minha concentração noutra coisa que não nele, naquele momento, concentração essa que foi quebrada quando me apercebi que com ele estava mais alguém.
A amiga entrou primeiro e foi-me prontamente apresentada, uma mulher bonita, sem ser espampanante, simples, alta, vestida casualmente, com o cabelo castanho longo, ondulado e os olhos de um azul intenso. Mas atrás vinha ela…
Foi a primeira vez que conheci alguém assim. Não era bela, num sentido de mera beleza estética. Era relativamente alta, apenas ligeiramente mais baixa que eu, um corpo equilibrado, sem ser espectacular, mas de uma elegância rara, graças à postura que ela tinha, um tom de pele morena, cabelo preto, completamente preto, escorrido, pelo ombro e uma franja que tinha caído em desuso desde que a Beatriz Costa deixara de a usar, o que lhe dava um ar muito “anos 20”…
…isto, claro, na altura, antes de as ditas franjas terem voltado a estar na moda, sendo a altura a primeira metade da década de 90 do século passado (sim, eu sei, estou velho, mas na altura não o estava assim tanto), mas depois…
…depois olhei para os olhos dela e tremi. Aqueles olhos castanho-mél transpiravam algo que eu nunca tinha visto e que lhe conferiam uma aura da mais pura sensualidade, e senti-me, pela primeira vez, completamente subjugado pela presença de uma mulher. Se ela me tivesse pedido naquele momento para me deitar no chão e rebolar, não sei se não o teria feito.
Claro que me recompus com alguma facilidade, mas ainda assim a presença dela não deixava de ser perturbadora.
E foi-o, de facto, durante toda aquela tarde enquanto a conversa fluía com uma facilidade surpreendente e enquanto ela se foi revelando aos poucos, mostrando ser muito mais que aquilo que, à partida, já parecia ser…
Houve alguns episódios com ela, já espalhados pelas páginas virtuais deste blog, e que foram marcantes, mas há um ou outro que ainda aqui não constam, mas que me vieram reavivados à memória.
Via o mundo de uma maneira algo diferente, na altura, fruto das muitas circunstâncias passadas até então e que não são de todo relevantes para aquilo de que aqui falo, mas o certo é que procurava, para mim, alguma estabilidade e a capacidade para assentar os pés no chão. Percebi, pouco antes de a ter conhecido, que para saltar alto é preciso ter um ponto de apoio sólido, no chão, e percebi também que durante a minha vida inteira tinha sentido o chão a fugir-me debaixo dos pés…
Ela acabou por me dividir entre uma atracção brutal e a vontade de me manter afastado. Sabia perfeitamente que algo entre nós não teria a mínima hipótese de resultar e não procurava nada de passageiro na minha vida.
Não podia no entanto de deixar de me deslumbrar pela segurança e liberdade que emanavam dela nas coisas mais simples, nos gestos mais insuspeitos. E ela, talvez porque tivesse a noção absoluta de que eu não a bajulava como todos os outros homens que andavam à volta dela, provocava-me…
…descaradamente…
…despudoradamente…
…mas ao mesmo tempo falava comigo de uma forma que também sabia que não podia falar com mais ninguém, expondo-se e deixando que eu conhecesse as inseguranças e os medos daquela mulher poderosa e que não deixava ninguém indiferente.
Ela lidava todos os dias com homens poderosos, fruto do trabalho que tinha, e já lhe tinham prometido a lua. No entanto ela continuava a ser quem era e a dar-se com pelintras meio perdidos como eu.
Quem costuma passar por aqui e me lê há mais tempo, sabe que me sei situar onde devo estar. Nunca fui pessoa para exacerbar as minhas qualidades e tentar esconder os meus defeitos. Sou o que sou e como sou, e a única certeza que tenho é que tenho de viver comigo todos os dias. Não me dou muita importância porque, no fundo, a importância de tudo é relativa e tenho plena consciência de que o universo não existe só para que eu existisse neste momento…
Ando aqui a divagar através destas ideias para tentar contextualizar o que vem a seguir, porque precisa de ser contextualizado para ser percebido, e peço desde já desculpa se causo alguma confusão. Mas a verdade é que naquela altura no tempo eu era alguém com 26 ou 27 anos que tinha passado por uma adolescência problemática e que ainda se sentia revoltado com o mundo, sendo que tudo o que me era realmente importante parecia ser-me tirado, fosse por que meio fosse. Assim sendo, para alem da revolta, havia um sentimento de alheamento, de “desligamento” talvez, em relação a tudo.
Durante a minha adolescência o amor e a paixão eram algo de extremamente difícil de concretizar…
…já o sexo era fácil, tão fácil…
…e até era aparentemente gratificante!
No entanto, uns bons anos antes de a conhecer, a conjunção de tudo o que se passou na minha vida até então tornou-me oco e vazio. E foi nessa altura que o sexo deixou de fazer sentido, até porque a cada pessoa que passava pela minha vida de forma absolutamente casual, apenas me sentia mais vazio.
Sabia que procurava algo, mas não sabia o quê.
Depois acabei por me envolver numa relação que durou uns anos e que acabou muito antes de ter acabado verdadeiramente, em que ela afirmava que eu era um autentico cubo de gelo…
…e com razão.
E eis que eu chegava a esta altura da minha vida, à procura de algo de estável e perdido no meio de incertezas.
Mas, por vezes, meia  dúzia de palavras são o suficiente para abalar o mundo…
…ou, pelo menos, o nosso mundo!
Depois de termos feito uma directa no meu estúdio, entre cegadas e diversão, e enquanto o resto do pessoal dormia, lavava-a até casa, para ir almoçar com o pai, que fazia anos, mas com a promessa de voltar ao estúdio assim que se despachasse do almoço.
Ao contrário do que era habitual em mim, levava o meu BMW 2002 Ti preto lentamente ao longo da estrada, estando ela recostada no banco, ao meu lado, de olhos fechados, fruto da noite passada em claro. Mas eis que de repente ela dispara a pergunta:
-Porque é que não tens ninguém?
-Desculpa?
-Porque é que não estás com ninguém?
…e pela primeira vez em algum tempo tive de parar para pensar. Não havia uma resposta fácil. Talvez numa tentativa de ganhar algum tempo retorqui com outra:
-Mas porquê essa pergunta?
Ela abriu finalmente os olhos, sorriu, e a resposta veio de forma fácil.
-Fazes-me confusão. És um gajo culto, falas bem, consegues falar de quase qualquer assunto, parece que nunca estas deslocado em lado nenhum…
-…mas parece que também nunca estou colocado…
-Verdade! Mas é preciso conhecer-te um bocadinho para perceber isso. Não é algo que seja evidente à partida. E no entanto estas sozinho…
-Se calhar estou à procura da mulher certa…
-Todos andamos à procura da pessoa certa…
-…o que não quer dizer que não nos vamos divertindo com as erradas pelo caminho. Eu sei. Mas já tive uma boa dose de diversão…
-Sim, acredito que sim.
-Obrigado pelos elogios.
-Não eram elogios. Eram constatações. Muitas mulheres davam tudo para que um tipo como tu se lhes atravessasse no caminho…
Fiquei sem saber o que dizer. E, como sempre, quando isso acontece, remeti-me ao silêncio e dediquei a minha atenção de volta à estrada, com a minha mão abandonada distraidamente em cima da alavanca das mudanças.
A mão dela foi pousar-se me cima da minha, os seus dedos entrelaçaram-se nos meus. Não tive coragem para olhar para ela e fingi continuar a dar atenção à estrada. Ela chegou-se a mim, encostou-se, repousou a sua cabeça no meu ombro e respeitou o meu silêncio. Dentro de mim despertava um turbilhão de duvidas e emoções adormecidas.
Chegávamos à entrada de uma povoação, onde havia um semáforo. Vi-o verde na distância e acelerei, na esperança de passar, mas a esperança dissipou-se logo em seguida, obrigando-me a parar.
Conforme o fiz olhei para ela, ela levantou a cabeça, olhou para mim e avançamos vorazmente um para o outro colando, naquele momento, os lábios e os sentimentos num beijo que me fez perder a noção de tudo e acho que apenas voltei à realidade quando os carros atrás de mim começaram a buzinar avisando-me para o facto de o semáforo estar novamente verde…
Quando finalmente estacionei o carro caímos nos braços um do outro.
Não havia ali paixão, nem desejo e ambos o sabíamos, mas estava presente entre nós uma intensidade difícil de explicar. Um carinho que, neste momento, se traduzia desta maneira, transbordando de todos os momentos que passáramos nas ultimas semanas.
Foi com algum custo que nos separamos, ela para o almoço prometido e eu para comprar as iguarias para fazer o meu e o do resto do pessoal que ainda estava no estúdio.
Fiquei parado a vê-la seguir até virar a esquina. Detestei vê-la partir…
…mas estava a adorar vê-la a ir!
Quando virou a esquina, mesmo antes de desaparecer, olhou para mim, mostrando nitidamente que sabia que eu a estava a observar, sorriu e piscou-me o olho. Eu também sorri. Talvez uma promessa para mais tarde?
Enquanto fazia as compras, pensava no que tinha acontecido. No fundo, tínhamo-nos deixado envolver num momento, mas não havia mais nada entre nós. Não havia pontos de contacto. Aquele momento não passava de uma cortina de fumo que se dissipava à medida que subia pelo ar. No entanto, era como fumo de incenso, que mesmo quando não se via deixava um aroma doce no ar, envolvente.
E foi este dia, estes momentos, que fizeram com que me começasse a recontruir…

1 comentário:

Anónimo disse...

A reconstrução é um processo difícil e de caminhos curvilíneos... é preciso força muita força mas com uma ajuda assim.. ajuda a encurtar o tempo necessário.

Obrigado Ulisses por este momento de leitura.

aquele abraço