A procura

Parte I - The office

Há dias indolentes.
Dias longos.
Este foi mais um.
Sabe-me bem entrar em casa e nem sequer acender as luzes, avançar por terreno familiar, ir à cozinha, abrir o frigorífico, tirar uma cerveja gelada, abri-la, ir para a sala…
…acendo a televisão?
Para quê? Para ver repetidamente a mesma coisa?
Além disso está-me a saber bem o quase silêncio, só quebrado pelos barulhos que chegam do mundo lá fora, como uma invasão ao meu. Uma invasão não solicitada nem procurada.
Uma vez que não consigo fugir da cidade resolvo mergulhar nela.
Sento-me na minha varanda, defronte do prédio de fronte, onde as salas estão iluminadas, sempre. Um edifício de escritórios.
A minha cerveja sabe-me bem, gelada, a escorregar pela garganta.
Vejo os carros e as pessoas, poucos, que vão passando na rua a esta hora. A cidade morre à noite, deixando apenas algumas áreas vivas.
Esta não é uma delas.
Ainda assim gosto do brilho quase fantasmagórico que chega a mim e ilumina a minha varanda. Gosto do ritmo e do pulsar desta hora.
No edifício em frente vê-se alguma actividade ocasional. Gente que trabalha até tarde, que negligencia a própria vida em favor de um trabalho que, muitas vezes, nem dá satisfação, limita-se a pagar as contas ao fim do mês…
…e para quê?
Eis que de repente um casal entra na enorme sala de reuniões que está à minha frente. Sentam-se na mesa, pousam papeis, sentam-se próximos, falam…
…de estatísticas?
…de números?
…de quê?
Passam assim um longo tempo.
Por vezes para observarem algo melhor ficam mais juntos e ele passa a mão por cima do ombro dela. Ela nunca perde a concentração.
Ao fim de um bom bocado ela levanta-se e sai da sala. Ele fica sozinho, debruçado sobre os papeis, desperta a gravata, abre os botões de cima da camisa, põe-se mais à vontade.
Ela volta, trazendo dois copos na mão, presumo que com café. Ele abandona os papeis, encosta-se na cadeira descontraído e aceita um copo da mão dela, dá um gole. Ela senta-se na mesa, ao lado dele, beberricando também. Falam os dois. Ele não tira os olhos dela. Mesmo a esta distância nota-se uma atracção óbvia da parte dele.
Ela solta o cabelo e deixa-o cair ao longo das costas.
Ele olha-a. Levanta-se, chega-se a ela, agarra-a por detrás do pescoço, puxa-a para ele e beija-a. Ela não oferece resistência, antes, abandona-se. Abraça-o.
Quebram o beijo e ela tira-lhe a gravata, desaperta-lhe os botões da camisa, desliza pelo corpo dele, não sei se apenas beijando, se mordendo também, não consigo distinguir na distância.
Quando ela pára, ele despe-a, beijando-a ao longo do corpo à medida que faz deslizar a roupa e quando a tem nua senta-a na secretária, e encosta o sei corpo ao dela, beijando-a.
Observo com curiosidade e inveja o prazer daqueles dois estranhos. Projecto-me. Queria estar ali, queria ser ele. A minha cerveja jaz abandonada no parapeito e é-me impossível desviar o olhar.
Ele desliza pelo corpo dela, senta-se à sua frente e enterra a cabeça no meio das suas pernas. Ela apoia os pés nos ombros dele e arqueia as costas para trás. Apoia os cotovelos na secretária e olha-o. Mesmo a esta distância quase sinto a luxúria e o prazer na expressão dela. Sei-a ofegante, vejo os seus espasmos, vejo o orgasmo que ela lhe dá.
Ele levanta-se a seguir. Quere-a, de certeza. Eu quero-a e não estou lá…
Ela deita-se na secretária de barriga para baixo, ele agarra-lhe as ancas e entra nela por detrás, devagar, primeiro, mas com uma subida de intensidade, de desejo, até se sentir à vontade para se soltar.
Vejo o orgasmo dele e vejo-o sentar-se cansado. Repousam os dois um pouco e vejo-os em seguida a vestirem-se novamente, aprumarem-se, a procurar eliminar qualquer indicio do que se tinha ali passado.
Por fim agarram nos papeis e saem da sala.
Eu tenho a boca seca. Acabo de beber a minha cerveja.
Já não me apetece a calma, nem o silêncio. Saio de casa e entrego-me à cidade…
…em busca de algo…


Parte II - Noite

O ronco do motor da minha mota enquanto deslizávamos pelas avenidas sempre me reconfortou e deu uma sensação de liberdade quase inexplicável. Hoje não era diferente.
Acelerei pelas avenidas sem destino, deixando-me levar apenas pelo gozo de conduzir. Num acto de rebeldia tirei o capacete para sentir o vento na cara. Não era meu objectivo chegar a lado nenhum depressa, deslizava apenas tomando atenção ao que me rodeava.
Ocasionalmente pelas ruas observava os locais do costume cheios de profissionais da noite, via os carros a passar devagar e ocasionalmente a parar. Palavras trocadas num ápice com elas por vezes a entrarem, outras não.
Fui andando. A verdade é que o “algo” que procurava era completamente indefinido.
Acabei por estacionar a mota num parque subterrâneo, e sai a pé até um bar. Estive, vi música ao vivo, o bar estava cheio de gente gira, mas deu-me a sensação que todos eles procuravam também algo indefinível, embora não se tenham dado conta disso.
Acabei por sair, como tinha entrado. Voltei ao estacionamento, e cheguei ao pé da mota com a sensação de vazio de não ter encontrado nada do que procurava.
Sentei-me na mota enquanto ganhava coragem para ir para casa. Um carro entra na garagem. Um Porsche. Admirei o carro enquanto este se dirigia com um ronco surdo para um lugar bem perto de mim. O motor desligou-se, a porta abriu e vejo sair de dentro do carro umas pernas longas, bem desenhadas, a que se seguiu todo o resto de um corpo de mulher absolutamente fenomenal. Produzida, mas sem excessos, elegante, esbelta, com o cabelo comprido, liso, loiro a cair-lhe até ao meio das costas e a emoldurar o rosto.
Olhei-a, não como um homem olha para uma mulher, mas sim como alguém admira uma obra de arte. Admirei-a.
Ela olhou para mim e sorriu.
Puxei de um cigarro, acendi-o, dei uma baforada lenta.
Ela fechou a porta do carro e accionou o alarme. Em seguida guardou as chaves e procurou algo na mala que levava a tiracolo. Tirou um cigarro. Aproximou-se. Passos calmos e seguros. Firme.
-Tens lume? – Perguntou-me.
Puxei do isqueiro e acendi-o. Ela aproximou-se a acendeu o cigarro. Puxou também uma baforada longa e lenta. Olhou para mim com olhos penetrantes.
-Obrigada!
-De nada.
Ia para se afastar. Deu dois passos. Parou. Voltou-se para mim.
-Sozinho?
-Sim.
-De partida?
Limitei-me a encolher os ombros.
-Alguém à espera?
-Não. Ninguém.
Ela sorriu.
-Então porquê partir?
-Não encontrei o que procurava…
Ela olhou-me como se tentasse adivinhar os meus pensamentos.
-Se calhar não encontraste ainda.
-Pois, se calhar é isso.
-E o que procuras?
-Não sei…
-Então como é que podes saber se encontraste ou não?
-Acho que sei quando encontrar.
Ela sorriu.
Aproximou-se ainda mais, perigosamente mais, colou o seu corpo ao meu, passou a mão por detrás do meu pescoço, puxou-me para ela, colou os seus lábios aos meus…
…e foi um beijo dado com vontade, desejo, paixão, doçura, tesão, tudo…
…e depois acabou.
Ela afastou-se com o ar de uma miúda que tinha acabado de fazer uma travessura.
-Vem… - disse-me.
Deixei a mota no sítio e segui-a…


Parte III - Menage


Saímos do parque de estacionamento para a rua. Ela seguia à minha frente com passos seguros e nada apressados. Eu ia meio ao lado, meio atrás. Não me dirigiu mais uma palavra. Eu permaneci calado também.
Saímos da avenida e entramos por ruelas típicas desta parte velha da cidade. Acabamos por entrar num edifício antigo com enormes portas em madeira. Subimos a escada, também de madeira, envernizada, coberta com uma carpete vermelha que fazia que o som dos passos fosse surdo, mas ainda assim ressoasse.
Subimos ao segundo andar. A porta estava já entreaberta quando chegamos ao patamar. Ela entrou à minha frente, esperou que eu entrasse e fechou a porta. Desabotoou languidamente o sobretudo comprido que trazia, revelando-me aos poucos algo que eu não desconfiara antes, mas que só confirmei quando ela fez deslizar o sobretudo pelos braços. Por baixo apenas um cinto de ligas que lhe segurava as meias pretas e uma cuecas da mesma cor.
Com um gesto pediu-me o blusão que lhe passei para as mãos e que ela pendurou num cabide junto com o sobretudo delas. Depois arrastou um puf quadrado para o pé de uma porta que se encontrava ainda fechada. Sentou-se a olhar para mim. Fiquei sem saber o que fazer.
Ela abriu a porta.
Encostada à parede uma mulher ruiva, linda, vestida como ela, olhou-a. Depois olhou para mim. Voltou a olhar para ela e sorriu, em sinal de assentimento. Depois fixou o olhar em mim como um convite. Avancei, inseguro mas excitado.
Ela espreguiçou-se contra a parede. Cheguei ao pé dela e ela olhou-me com luxúria e languidez nos olhos. Algo receoso, toquei-lhe, fiz deslizar os meus braços pelos braços dela que se encontravam esticados para cima. Ficámos a centímetros um do outro.
Senti a fragrância dela. Suave. Não resisti e beijei-lhe o pescoço. Ela soltou um gemido de mimo. Continuei a beijá-la, subindo o pescoço, ao longo da face.
Os nossos lábios colaram-se. As minhas mãos deslizaram-lhe pelo corpo, sentindo-a, quente. Procurei o seu sexo. Estava completamente encharcada, pronta.
A loira continuava a observar-nos.
Masturbei-a um bocadinho, por cima do tecido e ela gemeu e contorceu-se, sinal óbvio de que as minhas carícias eram bem recebidas. Depois ficou a olhar bem nos meus olhos enquanto eu a acariciava.
Com um gesto, desprendeu-se de mim, agarrou-me pela mão e levou-me até à cama. Ajoelhá-mo-nos no centro. A loira arrastou o puf para dentro da sala e sentou-se ao fundo da cama.
Beijá-mo-nos com sofreguidão, com desejo. Neste momento ela apetecia-me mesmo. As minhas mãos desciam pelas suas costas e subiam pelo seu lado, acariciando-lhe os seios.
Sem me conseguir conter, baixei-me e suguei-os levemente, lambi-os…
…senti as mãos dela a descer e a sentir-me por cima da roupa, a agarrar-me…
…o meu cinto a ser desapertado…
Fiz a minha mão descer e senti novamente o seu sexo. Meti a mão por dentro das suas cuequinhas para sentir a sentir nos meus dedos. Ela fez o mesmo e agarrou-me, começando a masturbar-me devagar.
Olhei para o lado e a loira, sentada, abria as pernas e afastava o tecido para o lado revelando-me também o seu sexo enquanto se masturbava a ver-nos.
Por fim ela liberta-me, sente-me, revela-me ao olhar da outra que me olha gulosamente.
Baixa-se e, enquanto me masturba, começa por me dar toques de língua na ponta, como que para me saborear. Por vezes dá um ou outro chupão. Deliro com a sensação.
Sem aviso, engole-me inteiro e sinto-me chegar à sua garganta. Fode-me com a boca.
Depois para, quase quando eu estava a ponto de não aguentar mais, fica só a masturbar-me lentamente e olha para a loira.
A loira masturba-se enquanto nos vê. Consigo ver a humidade que escorre do seu sexo, a luxúria nos olhos dela. Fixa o olhar na ruiva. Levanta-se, e chega ao pé de nós. A ruiva segura-me e aponta-me para ela como se fosse um convite. Ela baixa-se e prova-me também. A ruiva acompanha-a e sinto as duas bocas que me envolvem e beijam, ao longo de mim, que me engolem.
A ruiva leva um dedo ao meu ânus e começa a massajá-lo ao de leve enquanto me lambe e chupa com suavidade os testículos e a loira me engole quase por completo.
Não aguento a sensação e sinto o orgasmo a chegar. Elas apercebem-se e sinto as bocas das duas a chupar-me a cabeça, devagar, para me provarem.
Não me consigo conter mais e sinto-as a saborearem-me por completo, e quando o meu orgasmo acaba vejo-as a beijarem-se, com as bocas cheias do meu néctar e a partilharem o sabor.
Afasto-me um pouco e deixo-as ficar, observando-as apenas, sento-me no puf onde a loira tinha estado, e vejo a ruiva empurrar a outra e descer pelo seu corpo, beijando, torturando…
…vejo-a encaixar-se no meio das pernas da outra e torturá-la, devagar, beijando-lhe as virilhas, a parte de dentro das pernas…
…a loira, geme, faz movimentos coma as ancas procurando a boca que se nega a tocar-lhe…
…a ruiva esquiva-se habilmente.
A ruiva estica-se e tira algo de debaixo de uma das almofadas da cama, um vibrador duplo. Dá-o a chupar à loira enquanto continua com a tortura.
A loira chupa-o deleitada e geme…
A ruiva pega no vibrador ao fim de algum tempo e roça-o ao de leve no seu próprio sexo. Depois, num só movimento mete-o fundo, bem fundo, de tal forma que quase lhe falta o ar…
…e depois tira-o e mete-o de uma vez só no sexo da loira…
…que solta um grito de pura tesão…
…prazer…
…- mais…- diz…
A ruiva senta-se à sua frente, agarra na outra ponta e faz-se introduzir.
Cada movimento de uma repercute-se na outra. O ambiente esta carregado pela tesão destas duas mulheres.
Os meus olhos estão pregados nelas, sem os conseguir desviar. Começo a tocar-me enquanto as vejo. Elas erguem-se na cama, ainda a foder-se devagar e colam as bocas uma à outra. Olham para mim, vêem-me a começar a ficar excitado novamente e chamam-me com o olhar. A ruiva agarra-me, beija-me chupa-me e dá-me à loira que faz o mesmo. Vão-me partilhando as duas.
Nisto a porta abre-se e um outro homem entra, já nu…


Parte IV - Luxúria


Ele entrou sem uma palavra no quarto.
Pôs-se de pé ao meu lado na cama, observando o que ali se passava. A loura agarrou-lhe de imediato o sexo semi-erecto, masturbando-o até à erecção plena para me largar em seguida e lhe dedicar toda a atenção com a boca, chupando-o e lambendo-o deleitada, deixando-me exclusivamente à ruiva.
Este misto de sensações, o próprio voyeurismo, excitava-me, e obviamente, excitava todos os outros também.
Elas tem um orgasmo intenso e abandonam por fim o brinquedo duplo, deitam-nos na cama e fazem-se penetrar por nós, aproveitando para se abraçar e beijar enquanto nos fodem.
Os meus sentidos parecem sobrecarregados pela quantidade de sensações que chega até mim. Apetece-me fechar os olhos para as saborear, mas não quero perder todo o quadro de luxúria.
Por fim, não aguentando mais, sinto o meu orgasmo chegar de forma incontrolável. Desisto de tentar prolongar a sensação, de lutar contra mim próprio e abandono-me…




Arrasto-me para fora da cama fisicamente esgotado e sento-me de novo no puf. Não consigo deixar de olhar enquanto vejo aquelas duas mulheres e aquele homem numa luta desigual…
…mas em que só há vencedores e em que a derrota é tão doce quanto a vitória.
Ao fim de um longo tempo todos quebram.
Aninham-se os três, na cama. Eu recolho as minhas roupas, e começo a vestir-me.
A loura abre os olhos sonolenta e vê-me, enquanto me visto.
-Vais? – perguntou-me.
-Sim, vou. – respondi com um sorriso.
-E encontraste?
-Sim, embora também não saiba muito bem o quê…
Ela sorriu de volta.
-Ainda bem… - e deslizou para o sono.





Alguns dias depois passei de novo naquela zona e tive curiosidade em olhar para o edifício.
Fiquei surpreso. Não passava de um edifício degradado, emparedado e na mais completa ruína, o oposto completo do sitio em que eu tinha estado.
Tinha encontrado realmente algo…
…fosse o que fosse!

Sabes que mais? Vou-te contar um segredo.

Queres ouvir?

Presta atenção, então.

Sabes porque é que estás aqui, neste preciso momento, a ler estas palavras?

Achas que é fruto do acaso?

Pois eu garanto-te que não.

Todos os momentos anteriores da tua vida te trouxeram aqui. o que se passou na tua vida hoje, o que comeste de manhã ao pequeno almoço, a tua noite de ontem, o que planeaste há um ano atrás, as escolhas que fizeste na adolescência, as que os teus pais fizeram por ti na infância… Desde o momento em que foste concebido este momento eras inevitável. A partir o momento em que os teus pais foram concebidos, a tua concepção era inevitável. e assim por diante, por todas as incontáveis gerações.

Desde o primeiro hominídeo, o ser humano era inevitável. Desde o primeiro primata, o hominídeo era inevitável. desde o primeiro mamífero, o primata era inevitável…

Desde a primeira célula, desde que o Sol se incendiou e começou a formar o sistema solar, desde que a via láctea se formou, desde a origem do universo…

É essa a tua única importância, a tua essência. Tudo o que fizeste ou irás fazer é absolutamente inevitável, e por mais que aches que podes alterar alguma coisa, por maior que seja a tua ilusão de que tens livre arbítrio e controlas o teu destino, vives apenas numa ilusão que te deixa contente.

Aquelas que pensas serem as tuas decisões não passam de reflexos condicionados por tudo o que se passou na tua vida ao leque de escolhas possíveis numa dada ocasião. Se alguém souber tudo sobre ti e sobre a situação em que te encontras pode afirmar com toda a certeza a decisão que vais tomar a seguir.

Não passas, no fundo de um mero efeito de uma causa anterior, efeito essa que se transforma em causa para efeitos posteriores.

Sempre foi assim e sempre assim será, portanto dou-te um conselho:

-Relaxa! Aproveita a viagem. Aprende. Observa. Absorve o que te rodeia e lembra-te que todos os que se cruzam contigo, até aquela pessoa que nunca viste e que não vais voltar a ver mas que apanha o mesmo metro que tu naquele dia, naquela hora, teve alguma influência na tua vida. Se ele não estivesse lá, o teu dia seria diferente e o mundo seria deferente.

Momentos...


-És tão boa… - disse o pintas, de óculos escuros, com o cigarro ao canto da boca e pinta de malandro.
-Eu sei. E…? – respondeu ela de uma forma tão segura que desarmou completamente o moço.
Ele quase se escangalhou a rir quando ouviu isto, do outro lado da paragem, mas manteve a compostura, o mais que pode, deixando escapar um sorriso irónico, olhando apenas meio de lado e com a sobrancelha levantada para o tipo, que entretanto ficara calado e mudo, sem qualquer espécie de reacção.
Deu mais uma passa longa no cigarro, e voltou de novo a sua atenção para o livro que estava a ler, embrenhando-se na leitura, mas não perdendo o sorriso.
O autocarro chegou, ele colocou o marcador e fechou o livro, só então olhando para ela, com um sorriso matreiro.
Ela fingiu que não viu.
Acabaram os dois sentados frente a frente nos bancos.
Ele manteve o livro fechado, ela fingia não lhe dar atenção. Ele sorria, com o canto do lábio, e com o sobrolho meio levantado, como quem diz inequivocamente “sei que estas a fazer um esforço consciente para não me ligar, portanto basta-me esperar…”, ela sentiu-se levemente incomodada com a atenção dele.
Ele esperou, ela acabou por lhe dar atenção.
Ele falou.
-Teve sorte…
-Tive? – Respondeu ela admirada – Porquê?
-Porque se a resposta que deu fosse para mim, a conversa não teria ficado por ali…
-Não?
-Não.
Ela fingiu não estar interessada, ele olhou pelo vidro, para as ruas lá fora.
Ela continuou a fingir, ele abriu o livro e dispôs-se a continuar a ler.
Ela sentiu a curiosidade típica das mulheres, sentiu o sangue a ferver, sabia que ela a estava a espicaçar e resolveu não ceder e ele fingiu que não a estava a espicaçar, que se ela não queria saber, por ele, tudo bem, e continuou a ler.
Ela ficou irritada por ele não insistir, ele ficou divertido por ela estar irritada.
A curiosidade falou mais alto e ela acabou por perguntar, mesmo não o querendo fazer.
-E o que é que dirias em resposta?
-Que, a ser assim, deves passar muito tempo em frente ao espelho…
Ela ficou levemente corada e ele com um ar extremamente divertido.
Ela percebeu que lhe tinha dado a desculpa perfeita para lhe mandar um piropo.
-Mas claro que a conversa entre nós nunca chegaria a este ponto. – Continuou ele.
-Não?
-Claro que não. Nunca te abordaria de uma forma tão deselegante.
Ela ficou a olhar para ele com um ar intrigado.
-Então como é que o farias?
Ele olhou bem nos olhos castanhos e meio rasgados dela, vendo-a. Só depois respondeu.
-Bem, se calhar esperava que um tipo qualquer se fizesse a ti de uma forma completamente ridícula e sem ponta por onde se lhe pegasse, metia-me contigo de forma a deixar-te curiosa, mandava-te uma boca foleira a teu próprio pedido, para te exemplificar que a conversa podia não ter ficado por ali, se bem que, apesar de foleira, seria subtil o suficiente, esperava um pouco para ver a tua reacção e depois dizia-te que nunca te mandaria aquela boca porque a minha abordagem a ti seria diferente da do tipo original, portanto a resposta nunca chegaria a acontecer.
Ela ficou atónita a olhar para ele que continuava com o olhar fixo nos seus olhos sem ceder um milímetro de espaço.
-Achas que seria uma alternativa bem sucedida? – Perguntou ele com um sorriso.
Ela ficou em silêncio, não porque não sabia a resposta, mas porque não a queria pronunciar.
Ele desprendeu o olhar dela do seu, finalmente, e voltou a olhar pelo vidro.
-Claro que isto envolveria um certo esforço da minha parte, e eu não sou um tipo esforçado. Além disso também acho que sejas afirmativa de mais para estar com todos estes jogos de subtileza. Se calhar até te sentirias um pouco desconfortável.
Fez uma pausa como que para arrumar os pensamentos, ou talvez apenas para espicaçá-la ainda mais.
-Por isso, acho que, ainda assim, existiriam alternativas mais viáveis…
Ele estava a ser acutilante. E estava a enervá-la. E ele sabia.
-Achas que sim?
-Tenho a certeza absoluta.
-Absoluta mesmo?
-Mesmo!
-E quais seriam?
-Bem, para te ser franco há uma que me ocorre e que se sobrepõe a todas as outras…
-E que é?
Ele olhou-a novamente nos olhos, profundamente, fazendo com que o resto do autocarro que a rodeava desaparecesse e ficassem apenas os dois ali, um defronte ao outro, e, com a maior calma do mundo, limitou-se a perguntar:
-Vamos?
O sangue dela gelou com a pergunta que não esperava, de maneira nenhuma. Ficou completamente sem reacção. Ele levantou-se, estendeu-lhe a mão, que ela agarrou sem qualquer resistência, e ele levou-a até à porta de saída do autocarro. Agarrou uma das pegas suspensas dos varões altos para manter o equilíbrio e agarrou-a pela cintura, puxando-a para si, e de forma determinada inclinou-se para ela, que não fugiu, e tomou-lhe os lábios de forma suave, mas num convite explícito para mais…

Às vezes há momentos...

...em que a minha visão se turva e saio do mundo real que se estende para lá de mim e entro no mundo real que existe dentro de mim.

É nesses momentos, fugazes, que consigo a paz e me reequilibro.

O mundo dentro de mim é austero, pouco luminoso, mas concreto, feito de linhas rectas, detalhado, organizado e planeado.

É um mundo sem desejo, sem frustração. Sem necessidade. Um mundo que progride porque é harmonioso, limpo.

E quando esses momentos acabam, e se cai no mundo cá de fora, onde achamos o caos por não conseguir perceber o plano, encalho de novo aqui.

E tenho de respirar fundo só para pôr a funcionar a minha mascara e conseguir encarar os exemplares de homo sapiens que se passeiam à minha frente. Este pináculo da evolução primata.

Muitas vezes acho que um chimpanzé barbeado faria menos macacadas…

Opera

Saí do trabalho. Os dias já estão mais compridos, por isso saio ainda com a luz do Sol a dourar o topo dos edifícios.
Subi a rua a pé e dei com uma rotunda, ornamentada com uma fonte, no centro de um cruzamento mais que movimentado. Olhei para a estátua de onde jorrava a agua e pensei para comigo a quantas coisa teria ela assistido ao longo do tempo em que tem estado ali.
Atravessei a estrada, até a rotunda, e sentei-me na fonte. Fiquei imóvel, fechei os olhos, respirei fundo, enchendo os pulmões e prendi a respiração para que nem o som da respiração me distraísse. Depois, dediquei-me a ouvir.
Chegaram até mim os sons da cidade, entraram em mim, aparentemente caóticos e descoordenados, mas ao mesmo tempo parecendo uma sinfonia, dirigida por um qualquer maestro oculto. Depois, à medida que os meus pulmões reclamavam ar, a batida do meu coração começou a fazer-se sentir nos meus tímpanos.
Expirei por fim, abri os olhos, mas deixei-me ficar ali, imóvel, como se fosse parte integrante da fonte à beira da qual estava sentado.
É estranha mas deliciosa esta sensação de que tudo à nossa volta se move.
As ruas estavam constantemente pejadas de homens e mulheres, todos eles com as suas mascaras padronizadas.
Os homens com fatos azul-escuro, cinza ou preto, camisas brancas, azul claro ou cor-de-rosa esbatido, variando apenas nas gravatas usadas. Todos iguais, como parte de um exercito estranho que vai para o campo de batalha armado com canetas, calculadoras e argumentos legais.
Elas, todas completamente diferentes umas das outras, mas todas com a mesma saia quatro dedos acima do joelho, todas com o cabelo pintado, para não se verem os brancos da idade, todas maquilhadas, umas mais, outras menos, conforme as marcas da idade, e com as distinções sociais a serem feitas pelo estatuto das marcas que cada uma usava, mas todas elas a quererem parecer competentes, sensuais e fortes.
Via-os e perguntava-me, quantos deles se empenharão tanto na sua vida pessoal como se empenham na sua vida profissional?
Quanta desta gente que anda apressada de forma tão sensual, e por vezes mesmo ousada, pelas ruas desta zona “in” da cidade, na esperança de cativarem os clientes os chefes, os desconhecidos que se cruzam, chegam a casa e tentam cativar os companheiros?
Quanta desta gente chega a casa desgastada pelo esforço que faz para ser outra pessoa durante um dia inteiro e não tem paciência para investir na relação com o companheiro ou companheira, e na relação com os filhos?
Quantas separações há, entre cônjuges, entre companheiros, entre pais e filho, por causa destas mascaras?
Quantos homens e mulheres não se queixam de que os respectivos companheiros não lhes ligam e caiem na tentação da traição com colegas de trabalho, porque estes elogiam e enchem o ego?
E porque é que os companheiros não ligam? Será tão fácil e normal seduzir alguém que está vestido para seduzir, como alguém que está com um pijama largo e desbotado e a cara cheia de creme para as rugas e onde nem se vê um centímetro de pele.
Estranha sociedade esta onde o sucesso se mede, muitas vezes, mais pela capacidade de sedução e afirmação do que pela competência e capacidade de realização. Onde se dá mais valor às relações institucionais do que pessoais. Onde se passa mais tempo a investir no projecto da empresa em que se trabalha do que no projecto de vida e no legado que se deixa aos descendentes.
A humanidade não é uma sociedade, é uma aglutinação de egos que não conseguem ver além de si próprios.
Estava perdido nestes pensamentos quando, na rotunda, dois carros colidiram gerando o caos no caos que já havia anteriormente. A orquestra de buzinas subiu num crescendo ensurdecedor, acompanhada pelo coro de gritos e insultos…

Segui o meu caminho, reconfortado por esta opera de compositor desconhecido

Bebi...

...há poucos minutos, um expresso em chávena gelada, no qual derreti um pouco de chocolate negro e misturei um pouco de canela.
O café, volumoso e cremoso, espesso, desceu-me pela garganta e reconfortou as duas partes de mim, ou talvez apenas a que interessa.
O grau de satisfação manteve-se, e foi isso que me fez pensar no vazio. Não num vazio qualquer, como o espaço, ou m qualquer lugar abstracto, mas sim aquele vazio que cada um trás dentro de si e que todos conhecem tão bem.
Esse vazio é voraz.

Todos procuram algo para o encher, ou, pelo menos, tapar. Raros o conseguem encarar de frente. A maioria oculta-o de si próprio, e a melhor maneira de o fazer é querer algo.
Quando alguém quer algo, abstraí-se do vazio e tapa-o com o desejo. E o vazio fica tapado até ao momento em que se obtêm o objecto de desejo.
Mas ei-lo que, obtido, deixa de ser objecto de desejo, logo, o vazio aparece de novo. Mas quando volta vem maior, pois tem somada a desilusão.
E é isto que nos faz criar um novo objecto de desejo. Desta vez, maior, mais inatingível e que provocará uma desilusão maior e assim sim diante, num ciclo que dura a vida inteira…
…ou até que o individuo se liberte do desejo.
É quando o indivíduo se liberta do desejo que deixa de ocultar o vazio e tem, forçosamente, de encará-lo. Quando o faz consegue finalmente perceber o que o pode preencher e pode até ser algo que ele não deseje, aliás, normalmente será.
Mas há um concorrente para que ele não deixe de desejar, ou seja, a sedução. É a sedução que induz o desejo e que, dessa forma, oculta o vazio.
Todos gostam de ser seduzidos. O sedutor faz-nos sentir bem com aquilo que somos, e tira-nos desse vazio, ainda que temporariamente, dá-nos uma melhor imagem de nós que a temos. E isso faz-nos sentir bem, e satisfaz-nos, mas é no momento a seguir que o vazio se instala de novo. E quanto maior for o apelo, maior o vazio que se sente a seguir.
Isto acontece com tudo na vida, e todos, de uma forma ou de outra, são seduzidos e seduzem. Somos seduzidos pela publicidade a um produto de limpeza milagroso que se compra, e criamos a expectativa, e caímos na desilusão de ver que ele se calhar nem chega a ser tão bom quanto o que usamos desde sempre…
…é-se seduzido por alguém, intimamente, e nos momentos seguintes à satisfação do ego realizamos que o vazio foi tapado apenas por instantes, e só conseguimos ter raiva de nós próprios, nunca da outra parte, porque a outra parte apenas se limitou a preencher o nosso desejo, por inteiro…
…e à desilusão soma-se a culpa.
Mas chega a uma altura em que alguns, poucos, se apercebem deste ciclo e resolvem parar e livram-se da sedução, e do desejo, encaram o vazio de frente e percebem que aquilo que satisfaz não tem absolutamente nada a ver com o que pensavam antes, com o que procuravam, embora nem tivessem a certeza do que era…
…e descobrem, sem o desejarem, que se satisfazem com as coisas mais absurdas, simples mas requintadas, exclusivas porque não tocam ninguém da mesma maneira…
…como por exemplo um expresso em chávena gelada, no qual se derrete um pouco de chocolate negro e se mistura um pouco de canela…
…e sentem-se plenos.

Acho que tenho de me debruçar mais neste tópico...

O começo do dia

Tinha acabado de chegar à paragem de autocarro, com o cérebro ainda meio dormente dos semi-sonhos tidos na pacatez da viagem de barco.
Eram sete e vinte da manhã. Sentei-me. Fechei os olhos, no meio desta rua deserta. Sabia que o “60”, que me levaria ao alto da Ajuda ainda demoraria um pouco a chegar, como demorava sempre a esta hora da manhã. Comigo, na paragem, apenas um tipo, talvez com os seus cinquenta, todo grisalho a fumar um cigarro.
De olhos fechados, nesta pequena rua paralela à avenida principal, os sons da cidade eram baixos, não incomodavam. A cidade parecia que tinha ficado inteira depois destas duas ou três filas de prédios.
Mas eis que o silêncio é entre-cortado por vozes altas, propositadamente masculinas, quatro ou cinco a uns cinquenta metros à minha esquerda.
Chatos. Não se pode estar em paz.
Olhei e, lá estavam eles, de volta de uma carrinha cinzenta que estava estacionada em cima do passeio com as portas de trás abertas. Mas a comoção não era acerca do trabalho. Não tinha mesmo nada a ver com o conteúdo da carrinha.
Ela acabara de passar por eles.
Como já estava de costas para eles, tinha um semi-sorriso sacana na cara. Caminhava calma em cima das suas botas de cabedal até ao joelho, com saltos agulha, bem altos. Acima estavam umas meias de mousse, pretas, mas finas. As botas faziam-lhe as pernas parecer ainda mais elegantes, e ela tinha algum porte no andar.
A saia, preta, de tecido, era realmente mini. Tão mini que mal lhe descia abaixo das nádegas, e enquanto ela andava, a saia revelava, alternadamente, um pedaço de cada uma delas.
Um blusão de cabedal, apertado, demonstrava o suficiente da sua silhueta para deixar adivinhar que para lá do blusão havia uma cintura fina e um peito equilibrado, nem grande nem pequeno.
No rosto alvo, mas mais alvo ainda pela maquilhagem, destacavam-se uns lábios desenhados num tom de cereja madura, mas não demasiado, aquele encarnado vivo e brilhante. Todo o rosto era enquadrado por um cabelo liso, escorrido, pelos ombros, pintado de preto.
Os homens lá atrás, primatas hominídeos, ganiam como babuínos no cio. Mandavam ao ar piropos com declarações de intenções despropositadas, até porque, se ela se virasse de repente e os enfrentasse, toda aquela masculinidade daria lugar à insegurança.
Eu olhei-a e vi claramente para lá das aparências. Via-a a vir do outro lado da rua, na minha direcção, e percebi que, para lá de toda aquela segurança aparente, no andar, na forma como se movia, na forma como aparentemente ignorava os comentários, na forma como estava acima dos olhares dos homens (e das mulheres, embora destas, uma pequena minoria pelos mesmos motivos dos homens e a larga maioria por pura inveja) estava o ego frágil que precisava deste tipo de afirmação para se sentir bem.
Ela seria uma mulher igualmente interessante, viesse vestida como viesse. Mas, obviamente, não seria tão notada, porque nesse caso seria preciso olhar para ela com olhos de ver.
Estava já quase à minha frente, quando olhou para mim, directamente, procurando em mim a mesma reacção que os outros lá atrás tinham tido. Acho que para sua surpresa encontrou os meus olhos directamente nos dela, e não nas pernas elegantes ou em qualquer outra parte da anatomia.
Levantei ligeiramente o sobrolho, e ela percebeu claramente que eu não olhava para a mesma pessoa que os tipos lá detrás ou que o meu companheiro temporário de paragem que por esta altura se tinha esquecido do cigarro que fumava e olhava para ela com os olhos cheios de…
…gula!
Eu olhava apenas para um ser pequeno e frágil com uma necessidade de auto-afirmação extrema.
Ela desprendeu-se do meu olhar, desceu da segurança que tinha anteriormente, o sorriso desapareceu-lhe da face, e cravou os olhos no chão, à sua frente.
Como que por magia, os comentários dos babuínos cessaram, o homem ao meu lado lembrou-se do cigarro, e ela seguiu o seu caminho.
Mas quando chegou a esquina a seguir, onde ia virar para o lado da avenida principal, e antes de desaparecer por entre os prédios, olhou ainda, inquiridora, na minha direcção…
Hoje!



Não me apetece ser quem sou.

Mas também não me apetece ser alguém diferente...



Acho que hoje vou, pura e simplesmente, não ser...

Há passagens de livros...


...que me deixam agradavelmente surpreendido. Uma delas é esta que transcrevo a seguir.

A passagem é de um livro de Poul Anderson, curiosamente chamado "O Avatar". Não tem absolutamente nada a ver com o filme do mesmo nome, com a excepção de que o argumento do filme é uma cópia descarada de um conto do mesmo autor, embora hajam diferenças fundamentais, como por exemplo o facto de a acção do filme se passar num planeta distante chamado Pandora (e quando pandora abriu a sua caixa...), e o conto se passar em Júpiter.
A história do livro é extraordinariamente boa, tanto que nos deixamos envolver pelos personagens e esquecemos que estamos a ler ficção cientifica. Mais, faz pensar no que é a vida, no que é o divino, e quanto, por vezes, enchemos a cabeça de conceitos errados.
Mas o livro começa desta maneira:

"Eu era uma bétula, esbelta na minha brancura no meio de um prado, mas não tinha nome para aquilo que eu era. As minhas folhas bebiam energia da luz do Sol, que perpassava através delas e lhes fixava o verde resplandecente. As minhas folhas dançavam ao vento, que tirava melodias dos meus ramos como se eles fossem uma harpa. Mas eu não via nem ouvia. Os dias, já a encurtar, deram-me um tom de mel-queimado; a geada acabou por me desfolhar, deixando-me nua; a neve estendeu-se em torno de mim durante a minha longa sonolência. Depois Orion perseguiu a sua presa para além deste firmamento e o Sol dirigiu-se para o Norte para brilhar sobre mim e me despertar. Mas de nada disto eu tinha percepção.

E no entanto eu tudo registava, porque vivia. Cada célula dentro de mim sentia de maneira secreta como o céu reluzia primeiro em todo o seu esplendor e depois mergulhava na quietude, como o ar soprava em vendaval ou uivava ou me acariciava num sonho, como a chuva caía fria a tamborilar, como a água e os vermes abriam caminho até às minhas raízes penetrantes, como as avezitas pipilavam no ninho onde eu lhes dava abrigo e tremiam, como a erva e o dente-de-leão me envolviam num amplexo, e como o húmus reverdecia enquanto a Terra avançava na sua rota por entre as estrelas. Cada novo ano que findava deixava gravado um anel no meu corpo, a lembrar a sua passagem. Embora não tivesse consciência disso, eu estava ainda em Criação e fazia parte dessa Criação. Embora não compreendesse, eu sabia. Era Árvore."